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quinta-feira, 21 novembro 2024 11:46

A medicina social europeia e a definição de saúde da OMS

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Da comissão preparatória para a definição dos estatutos da OMS, que se reuniu em março de 1946, em Paris, participaram três das mais importantes figuras da medicina social europeia dessa época: o belga René Sand, o croata Andrija Stampar e o norueguês Karl Evang (WHO, 1946b). O Brasil esteve representado pelo médico Geraldo de Paula Souza, fundador da Escola de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

René Sand, que exerceu a função de coordenador e relator da comissão, era o mais conhecido de todos em virtude de sua expressiva atuação em assessorias internacionais acerca da teoria e prática da medicina social. Sand era também a principal liderança europeia no campo das políticas de serviço social, ainda incipientes nessa época. De sua 10 Brasília, setembro de 2020 parte, Stampar viria a se destacar como presidente da I Conferência Internacional de Saúde da OMS em 1948. Ambos tinham em comum o sentimento de frustração com os objetivos e métodos da medicina realizada em consultórios particulares, a que denominavam de “medicina individual prática”, e lamentavam o desaparecimento do espírito social entre os médicos. Consideravam que o avanço para a medicina social seria inevitável porque o cuidado médico meramente individual encontrava-se em franca crise.

São diversas as indicações de que a fonte original de inspiração para a ideia de saúde como completo bem-estar foi o utilitarismo de Jeremy Bentham, com sua compreensão “fisiológica” da saúde como um modo de prazer, em contraposição ao desprazer peculiar às enfermidades, conforme referido em sua obra clássica Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, de 1781.1

No capítulo V, Bentham (2000, p. 36) afirma que o prazer da saúde “é o sentimento ou fluxo interno agradável das sensações que acompanha um estado de plena saúde e vigor, especialmente em momentos de esforço corporal moderado”.

A seguir, acrescenta: “pode-se dizer que um homem está em estado de saúde quando não tem sensações desagradáveis que possam ser percebidas em qualquer lugar do seu corpo”. Essa concepção individualista e organicista entende que o bem-estar específico da saúde e o bem-estar social de modo geral são constituídos pelo somatório das utilidades individuais positivas e negativas, ou seja, do prazer e do desprazer em seus fundamentos fisiológicos e sensoriais.

As ideias de Bentham foram muito apreciadas pelos autores da medicina social europeia da década de 1930. Sob a liderança de René Sand, esses médicos cultivaram a noção de bem-estar como um dos temas fundamentais de pesquisa e de ensino acadêmico.

Em seu livro L´Économie Humaine par la Médicine Sociale, de 1934, Sand se refere dezessete vezes à noção de bem-estar (bien-être) e vinte vezes em Vers la Médicine Sociale, de 1948.

A influência do pensamento de Jeremy Bentham transparece na seguinte afirmação de Sand acerca da relação entre pobreza, bem-estar e saúde com base na noção de capital social:

  1. Bentham foi criticado por Marx (1968, p. 708) justamente devido a esse tipo de interpretação histórica dos fenômenos sociais: “Com a mais ingênua ingenuidade, ele toma o moderno burguês, especialmente o burguês inglês, como o homem normal. Tudo o que é útil para essa estranha variedade de homens normais e para seu mundo, é útil de maneira absoluta”.
  2. Conforme pesquisa nos livros mencionados que constam do site Google Books. Texto para Discussão 2598 11 Os Médicos, a Saúde Como Completo Bem-Estar e a Questão do Desenvolvimento Toda vez que permitimos que um indivíduo, uma família ou um grupo da população desça abaixo do mínimo de bem-estar, de proteção, de cultura compatível com a saúde física e mental, estamos empobrecendo nosso capital social e preparamos para nós penalizações futuras, porque será necessário recuperar ou manter com grande custo aqueles que deixamos decair (Sand, 1934).

Diante de tal afirmação, pode-se concluir que a incumbência de proteção à condição de bem-estar social cabe a todos nós, cidadãos, e não, primariamente, ao Estado e suas instituições. Aparentemente, o que as lideranças da medicina social de 1946 consideravam como prioridade era a implantação de um conjunto de ações de proteção social da população pobre, de acordo com o espírito benemérito das poor laws, que estimularam, no século XIX, a realização de mudanças focalizadas nas condições de vida da pobreza. Como se sabe, o próprio Bentham chegou a coordenar essas ações, quando foi nomeado comissário-geral dos Pobres do Reino Unido.

Na reunião preparatória dos estatutos da OMS, realizada em Paris, sob a coordenação de René Sand, foi dada a seguinte redação: “saúde não é somente a ausência de enfermidade ou doença, mas também um estado de aptidão física e de bem-estar mental e social” (WHO, 1946a). Dessa versão preliminar, cabe destacar o uso da expressão aptidão física, peculiar à linguagem médica, em vez de bem-estar físico.

Comparando as duas redações, conclui-se que a noção de “completo bem-estar”, que veio a ser o aspecto mais polêmico da definição final acordada em Nova Iorque, resultou de uma modificação introduzida na reunião de Nova Iorque, embora o entendimento da saúde com base na noção de bem-estar estivesse presente desde as discussões iniciais em Paris. Não obstante, René Sand não foi o responsável por essa definição. Como se sabe disso? Pelo fato de que não pôde participar da reunião de Nova Iorque devido, ironicamente, a um problema de saúde (WHO, 1946b).

Entendemos que a concepção de bem-estar, segundo a medicina social dessa época, tinha um caráter essencialmente liberal. A expectativa do alcance da saúde relacionava-se, mais que nada, com as novas funções de proteção específica da saúde que os médicos tinham a exercer pela prática da medicina social. Diante dos problemas sanitários que afetavam os pobres no pós-guerra, os médicos esperavam encontrar uma solução no âmbito da esfera técnico-social da medicina liberal como prática médica autônoma. Portanto, ainda não tinham a possibilidade de pôr em prática um conjunto heterogêneo de políticas públicas desenvolvimentistas, conduzidas diretamente pelo Estado na condição de uma reforma sanitária como seria defendido por Gunnar Myrdal por ocasião da V Conferência da OMS, em 1952

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